Este contraste faz-me pensar na diferença que faz à minha cabeça uma simples mudança de observado. Perante a mesma cena, um leão que caça um alce, a minha simpatia pende para o lado que estou a observar.
A partir deste exemplo gostaria de fazer uma analogia com as tais situações e histórias negras no passado das civilizações.
Um exemplo: Marquês de Pombal
- Para os estudiosos e simpatizantes das suas obras, o Marquês de Pombal foi um homem muito à frente no seu tempo, que fez obras notáveis;
- Mas na perspectiva popular, o despotismo com que exerceu o seu governo foi uma mancha negra numa página da história de Portugal;
Segundo exemplo: Salazar
- Como é possível que haja pessoas saudosas do tempo da ditadura do Salazar? Porque para eles os benefícios contíguos à liberdade de expressão e associação, não compensaram os problemas que advieram com a democracia.
Existem muitos outros exemplos que eu poderia citar, incontáveis, onde a nossa simpatia tenderia consoante o objecto analisado e o preconceito do analista. Isto é, um documentário sobre Salazar pode ser abonatório da sua obra, ou pelo contrário, endemoninhá-lo consoante seja o objectivo do jornalista.
Agora coloco uma questão muito pertinente:
Existe alguma diferença entre o Salazar e o Marquês de Pombal? Na minha opinião, poucas. Ambos afastaram opositores e detractores e abusaram do poder para perpetuar a governação e manipular o povo.
Mas existe uma pequeníssima diferença que, para mim, é suficiente para exaltar o Marquês de Pombal e condenar o Salazar: o contexto histórico.
O primeiro governou no século XVIII e o segundo em pleno século XX. A diferença seria ainda mais substancial se estivéssemos a falar de um regente do século XII ou anterior e outro do século XXI. O que quero dizer com isto é, o primeiro, à parte a sua genialidade, limitou-se a governar com um pouco mais de zelo mas sem fugir ao que era expectável numa governação monárquica. A eliminação sistemática dos opositores é uma lenga lenga repetitiva nas páginas das histórias de todas as nações.
Quando é que surge a viragem? Em pleno século XX, a consagração dos direitos humanos, o fim da escravatura, a exaltação da dignidade humana. Salazar governou, portanto, num contexto entre democracias, onde se começou a encarar o ser humano numa perspectiva mais digna e humanista, e cujos actos foram mais despropositados e, por conseguinte, condenáveis.
Posto isto, carece-me chamar a atenção para uma prática que vejo frequentemente, e cuja objectividade é inexistente ou, pelo menos, parcial:
Quando se misturam cenários de séculos passados com moralidade do século vinte, ou cenários de outras culturas com a moralidade do ocidente. Isto é muito grave, pois facilmente induz o leitor em erro.
Um senhor decide expropriar a terra de um fazendeiro (cenário muito hollywoodesco, eu sei) em proveito de um nobre devido ao direito de sucessão não ser pago. Aos olhos do século XXI, este acto é uma tremenda injustiça, mas para viveu naquela época este era o pão nosso de cada dia. Era comum os senhores fazerem isto pelos mais diversos motivos. E quem diz isto, diz todo o género de injustiças. O escárnio e o ostracismo dos que eram diferentes; a não aceitção e a perseguição da mudança, o medo do incompreendido. Ainda não existia a distinção entre o acto e a natureza do actor. Não era o acto de deveria ser condenado, era o próprio actor que era condenado. Não havia distinção entre roubo e ladrão.
Vou dar apenas mais um exemplo:
Quando estive em Moçambique fui confrontado com a corrupção visível dos polícias. Neste caso em concreto, dos polícias de transito. É normal que o polícia de transito tente extroquir sempre algum dinheiro aos condutores. Principalmente àqueles que visivelmente transgridem as regras e aos estrangeiros. A princípio fiquei chocado porque os meus valores condenam aquele tipo de actuação. Mas tudo ficou mais claro para mim, quando percebi que não era aquele ou aqueles polícias em particular que faziam aquilo, mas se tratava simplesmente de uma situação/oportunidade que aquela profissão proporciona e que o polícia administrativo que passa o dia a fechar envelopes anseia por lhe tomar o lugar quando surgir uma vaga, para fazer exactamente o mesmo.
Porquê "impertinências do contexto histórico"? Onde é que entraria o romance nas cruzadas, na inquisição ou nas perseguições religiosas, se fosse respeitado o contexto? Não entraria. Tratar-se-ia simplesmente de uma tese antropológica ou sociológica. Por isso, o contexto histórico ou cultural é impertinente quando se pretende tratar destes assuntos de forma a condenar a acção de uma das partes.
Por muito que me custe admitir a Inquisição e outros erros da Igreja Católica, devo ser capaz de relativizar a acção para o respectivo contexto e não trazê-lo à luz do meu mundo. Neste sentido, as acções inquisitórias quase se tornam obvias. Era assim que os homens que detinham o poder lidavam com os problemas. Não havia a dignidade humana. A liberdade é um conceito que ganha corpo apenas na revolução francesa. Isto é, um conceito 5 a 6 séculos posterior (refiro-me ao inicío de ambos. É obvio que a inquisição do séc XVII em Portugal, nada tem a ver com a Inquisição romana do séc XII, nem os frutos da revolução francesa foram imediatos). Onde é que está, por isso, a justiça na critica à Inquisição? Normalmente guardada numa gaveta, trancada e sem chave. O romance assim o exige.